quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Nos últimos meses, Alice havia envelhecido anos. Sentia-se diferente. A primavera chegara e ela ainda não conseguira olhar as flores. Estava atenta à vida. Sempre tentou evitar os riscos e, por isso, viver era algo quase como colar os cacos de um copo de vidro. De pouco em pouco, com cuidado para não se cortar. Tudo lhe causava medo, todo cuidado era pouco para não se ferir. Amava em silêncio, aparecia pouco, desejava pouco, falava pouco. Nos últimos meses, mais do que nos últimos anos, quando Alice já podia revelar-se, amou mais, feriu-se mais, falou mais. Agora, quando sorria, Alice fazia mais consciente do mundo. Sabia que se seu sorriso era doce, tratava-se de uma doçura diferente. Entendia a vida de outra forma. Sonhar com o vestido que usaria, ou com tudo que poderia fazer caso nada pudesse lhe impedir, ou com a viagem dos sonhos, ou com um amor antigo, ou com tantas outras coisas possíveis naquele mundo que às vezes era tão inacessível aos outros, lhe parecia bobagem. Nada lhe resgataria do País do de Verdade para seu antigo país. Agora, compreendia a vida de outra forma, e, para ela, esta era uma sucessão de dias mais ou menos felizes, com mais ou menos dificuldades, com alegrias e tristezas. Embora soubesse que o mundo não é cor-de-rosa, sempre evitou olhar para as tristezas. Preferia continuar colando o copo. Quando Alice se mudou de país, se permitiu jogar o copo no chão. Ficou com raiva numa discussão, deu um último gole e quebrou com pouca culpa. Nem os cacos recolheu. Sabia que era inevitável olhar para as coisas tristes da vida pois elas de fato existiam e também faziam parte do dia-a-dia. Alice aprendeu a enfrentar os medos, a ser mais tolerante com as pessoas realmente importantes. Aprendeu que não se tem poder sobre todas as coisas da vida e que ela própria não é um copo. Aprendeu que as coisas complexas não chegam sozinhas e que as coisas simples estão disponíveis. Olhou as flores que começavam a sair. Viu uma praça, um cachorro e vários pombos. Os pombos a insistirem nas migalhas, o cachorro a insistir nos pombos. O ônibus fez uma curva e o chapéu do senhor vôou. Olhou um menininho contando história para um bebê de colo e o bebê sorrindo. O mundo estava igual. Alice estava diferente.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Alice dançou. Há tempos não dançava... não suava... Dançou. Seus braços e pernas pareciam se entender. Um podia ir só. O outro podia ir acompanhado. Os dedos movimentavam-se, as mãos, o corpo. O corpo encolia e logo estava livre. Fechava e logo estava novamente feliz. O braço ia longe e podia alcançar o que Alice nem sabia, mas com certeza podia alcançar. O corpo paquerava Alice, como se dissesse o que Alice tinha esquecido. Os pés percorriam parados. O pescoço rodava. Deitada. Sentada. Podia sentir-se livre. A música era singela e pouco ela ouvia porque o que ela sentia de verdade era a si própria. O corpo ia para um lado e levemente passava para o outro. Espreguiçava, dançava. Não era ballet, não era nada que pudesse dizer o que tinha de ser. Era apenas o que Alice queria. Apenas isso. Braços que sobem, dedos que escrevem o ar num dialeto incompreensível. Se Alice estivesse falando naquela hora, se estivesse mudamente falando, podia bem entender. Falava que o corpo que estava anesteziado, agora dançava. Falava que gostava quando os olhos eram pintados, ou quando as unhas estavam vermelhas. Falava que gostava de cor. Falava que gostava de vento, de suor, embora só com muito esforço, Alice conseguisse suar. Seu cheiro era só quando acordava. Um cheiro bom de sono. Às vezes ela podia sentir. Quando suava, cheirava a água. Naquela hora, sentia os cabelos passarem pelo rosto levemente. Passavam pelo queixo, pelos olhos. Nunca tinha sentido como eram tão finos... Gostou de não tê-los encolido. O vento mal tocava a nuca. Ponta do pé. Perna esticada. Barriga. Braço alongado. Dobrava-se. Era um origame ansioso, que ora estava de um jeito, ora de outro. O corpo de Alice falava e ela mal tinha ouvido. Agora, ouvia. Dizia que queria ser percebido, reclamava atenção de Alice. O que ela podia fazer para reconciliar-se? A resposta era simples: precisava ouvi-lo.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Alice andou. Ainda era cedo e ela encontrou pelo caminho: uma calça e sapatos usados na calçada, embora o seu dono não estivesse dentro; um senhor carregando um cesto com pequenos peixes, mas que pareciam pesar toneladas; duas pipas dançando no ar, saindo de dentro do ônibus e duas mãozinhas agitadas, empinando-as; uma senhora fazendo sua caminhada matinal enquanto rezava o terço; ondas que se agitavam naquela imensidão azul que mereceu o nome de "mar". Alice impressionou-se com a vida que já havia começado enquanto ela sentia que ainda estava acordando. Gostava de olhar a vida. Estava parada e uma menina de cachos pretos se aproximou. Alice não era do tipo que procurava conversa, mas quando a conversa a achava, ela costumava ser receptiva. A menina tinha olhos curiosos, tudo queria saber, olhos de pessoa inteligente. Disse seu nome, tinha nove anos de idade. Alice já não tinha nove anos de idade há quatorza anos. Falava com Alice e sorria. Queria saber das coisas. Por que você usa isso na boca? Meus dentes não eram muito certos, então, eu usei um aparelho pra consertar e agora, uso esse pra mantê-los corretos. Ela se satisfez com a resposta. Saiu, saltitou, voltou. Você come com ele? De vez em quando. Você escova os dentes com ele? Não. Por que? Você não acha que deve ser difícil escová-los com isso? Elas sorriram. A menina saiu, saltitou, voltou. Olhava Alice curiosa. Você dorme com ele? Durmo. Você sonha? Alice, que já estava impressionada com aquela menina, estava, naquele momento, maravilhada. Como poderia uma criança de nove anos, que não a conhecia, se interessar pela possibilidade do sonhar? Alice era curiosa, mas nunca lhe ocorreu ver alguém e se perguntar se existia sonho... Para Alice, os sonhos eram muito importantes. Adorava sonhar e lembrar ao longo do dia. Adorava rir do seu próprio sonho. Às vezes, o sonho a fazia chorar, mas, em geral, lhe causava curiosidade. Adorava a possibilidade de fechar os olhos e surpreender-se com o que esse simples fato podia lhe oferecer: imagens, lembranças, alegrias ou tristezas. Sonho, você sonha? Sonho. Alice estava ansiosa por saber. Nossa, imagina o sonho dessa menina, pensou Alice. O que você sonha? E, antes que Alice pudesse descobrir, a menina foi chamada pela mãe, num chamado chateado de quem tem trabalho por ter uma filha tão inteligente e tão curiosa por saber da vida. Ela olhou para Alice, lamentou com pouca tristeza não poder continuar a conversa, mas sabia que conversa não lhe faltaria, pois onde estivesse, a conseguiria. Alice sorriu. Estava impressionada e nunca saberia quais as imagens, lembranças, alegrias ou tristezas aquela menina tinha ao fechar os olhos. Conformou-se.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Alice acordou. Dormia fazia meses. Dormia como fazia quando criança, quando sentia uma dor muito forte e não sabia o que fazer com ela. Com a dor. Era forte, cansava, tomava. Foi falar com a índia. Aquela mulher de cabelos cheios, como os que Alice queria ter. Pele alaranjada, como Alice queria ter. Sábia, muito sábia. Como Alice queria ser. Deitada, Alice sonhava, falava, desejava o momento de não mais sofrer. A índia que às vezes lhe desmontava, lhe desvelava, sem medo de que Alice pudesse morrer com suas palavras, falava. Dessa vez, parecia estar mais doce, mais entendedora que Alice já não suportava pouco saber. Às vezes, era difícil vê-la, pois encontrá-la era a possibilidade de se encontrar também, e Alice, como sempre, tinha medo. Mas, de tudo que se falou, o que mais ecoou dentro de Alice foi: o que é seu é seu. E, como num estalo, Alice despertou. Tinha tanto e ainda tanto a ter. Estava disposta, como depois de horas de sono, se bem que no caso dela foram dias... Queria entender o que mais podia ter. Queria muito. E, a dor, que também ela tinha, sabia que era dela e que um dia poderia entender. Mas sabia que tinha uma vida inteira para viver e além disso, nada mais queria fazer.