quinta-feira, 16 de abril de 2009

Ela quase não sonhava mais com sua falta de ar. Fazia tempo que Alice não sonhava que o ar estava acabando e que ela iria morrer. Todos aqueles sonhos estranhos em que seus piores medos tiravam-na o ar, fazia tempo deixavam-na dormir em paz. Feriado. Casa de praia. Casa fechada há tempos. Poeira. Pela primeira vez seu sonho de falta de ar foi induzido pelas circunstâncias empoeiradas de um fim de semana prolongado. No sonho, ela era trocada. Alice há tempos não temia ser trocada pois andava pensando em trocar. Lembrou-se das conversas com seu reflexor. Havia inventado esse apelido para nomear o amigo que tanto lhe causava reflexões. Achava que ele devia ser analista pois, como Freud disse, um analista deve ser opaco como um espelho e não mostrar nada além do que lhe é revelado. As palavras podem não ter sido essas mas a idéia caminha por aí. Como Alice já tinha sua analista, ele era seu reflexor. Pois é, lembrou das conversas com ele. Concluiu: será que a vontade de trocar era o medo de ser trocada? Alice não sabia. E talvez não precisasse saber. A angústia de Aice vinha da vontade de colocar nome em tudo, de entender. Era tão fácil quando pensava, estupidamente, que o amor era o suficiente. O Reflexor disse-lhe que parecia desacreditada no amor. Ela sabia que o amor e todas as outras coisas da vida tinham a mesma relação com ela: tudo era como tomar banho de piscina. Ela resiste para entrar, mas depois não quer sair. Bem que Alice gostaria de ser diferente. Gostaria de ter com tudo, a mesma alegria que tinha com algumas poucas coisas. Achava que o problema podia ser com ela e não com as outras coisas da vida. A analista interpretou. Você oscila entre a tristeza profunda e o "está tudo bem". Interpretação mais cortante que faca em uva. Entra com dificuldade, mas depois que corta a casca, penetra de um jeito que não tem jeito, já está dentro. Alice parecia se desmanchar num pôr do sol. tudo que estava calmo em sua angústia, agitou e angustiou ainda mais. Aquela cor parada sob o mar, alagou-se. Alice estava agitada. Falou muita coisa ao Reflexor. Tantas coisas que ela nem lembrava mais. Achou até que o assustaria. Ao contrário, chamou-a de forte e bonita. Era tudo que Alice precisava ouvir. Estava pronta para pegar ar e continuar vivendo no "está tudo bem".

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Alice lembrou-se daquele senhor: chapéu, suéter vermelho, sorriso no rosto. Sentiu saudade. O encontro se deu em outro país, em outra língua. Ela estava feliz. Era a sua primeira vez com a neve. Numa fantasia quase infantil - se é que desejos são apenas para crianças - ela imaginava como seria a sensação da neve. Imaginava pegá-la, experimentá-la. Lá estavam as duas. Alice admirava, sorria. A neve se oferecia. Alice queria esquiar! Entrou no táxi do senhorzinho. Ele muito simpático, Alice encantada. Os olhos dela sorriam. Ele olhou. Primeira vez que vê a neve? Sim, dá para perceber, não é? Sim, sugiro que abra um guarda-chuva de cabeça para baixo e depois desvire em cima de você. Eles sorriram. Ela adorou, tinha certeza que se tivesse guarda-chuva naquele lugar, assim o faria. Você tem que comer a neve se quiser voltar aqui. Já experimentei. Alice respirou confortada. Voltarei. Conversaram. Era tão boa aquela sensação. Ele mostrou o lugar mais barato para alugar esqui. Brincou. Fotografou. Alice estava apaixonada por aquele senhor que tanto a fazia lembrar. Lembrou do seu vô. Ainda tinha dois. Um era quente, não tinha frieza. Nunca brigou com ela. Ao contrário, sempre a agradou. Quando era mais novo e Alice criança, fazia molecagens que a divertiam. Ela adorava vê-lo. Achava que ele era tão bom quanto qualquer idéia de Papai Noel que pudesse ter. Seria um Papai Noel nordestino, é verdade. Tinha a simplicidade de um. Alice sabia que com esse, era mais uma neta como outra qualquer, mas se orgulhava de como a chamava: boneca. O outro, era frio por fora, quente por dentro. Não conhecia muito carinho, mas aprendeu a deixar Alice chegar perto. É verdade que as tentativas foram grandes até que ele pudesse lidar com o fato de que Alice tentava e, por isso, a ele só restava deixar. Lembrou dos passeios, das brigas, dos presentes. Em meio a tantos netos, Alice sabia que ele gostava dela de um jeito especial. Ele achava graça de suas graças e ria quando ela chegava feliz. Era essa a sensação que Alice tinha naquele momento: frio por fora, quente por dentro. Apesar de toda roupa, podia sentir frio, mas nada se comparava ao quente que tinha por dentro. Um quente de algria grande, dessas que tomam e deixam o sangue correndo. E lá estava, com aquele senhorzinho que conversava com ela mais do que qualquer vô seu jamais conversou. Revelou seu apelido: El Conde. Ela achou engraçado. Deixou-a e combinou de pegá-la. Alice não cabia em si de tanta euforia. Esquiou, caiu, brincou. No horário combinado, lá estava ele e ela tão longe ainda. E se ele pensar que ela não cumpriu o acordo? E se ele for embora? Correu com aqueles sapatos que mais pareciam sapatos de astronautas de tão vagarentos. Correu como quem corre para chegar no horário para não levar bronca da mãe. Chegou, mas nem conseguia falar de tão cansada. Ele não a entendia. Calma. Certo, a demora é para devolver tudo que aluguei. Espero. Ela respirou. As palavras tinham sido cuspidas e agora podia se recuperar. Devolveu, voltou, entrou no carro. Ele fez piada, deu chocolate. Disse que era para esquentar. Chamou-a de "bombom", e entregou outro chocolate. Ela adorou. Lembrou dos vôs. Mais conversa e o destino chegou. Alice tinha que deixá-lo. E se não vê-lo mais? Sentiu uma tristeza de morte. Tristeza que sabe que sentirá quando não mais puder ver seus vôs. Despediu-se. Será que El Conde entende como Alice o queria bem? Alice não poderá saber. Conforta-se em saber que comeu neve, e, talvez voltará a encontrá-lo.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Alice desistiu de se perguntar, de curtir a dúvida. Entendeu que aquela rotina de interrogações tomava a sua vida e a consumia de um jeito que não lhe sobrava. Decidiu que se ocuparia do resto do mundoe, se o amor existisse de um modo possível, se fosse que conduzisse à emoção constante, ela descobriria. Então pensou sobre o que se ocuparia. Pensou no que gostava. Natal. Ainda falta muito. São joão. Falta muito também. Alice sabia que gostava de festas, mas a vida não era uma - nos tempos em que morava no seu antigo país, Alice, romanticamente, poderia dizer que era, mas agora sabia que não. Alice suspirou. Sabia que, além de festas, gostava de viajar. Conhecer. Alice gostaria de viver conhecendo, descobrindo. Lembrou da sensação que teve ao chegar em alguns lugares pela primeira vez. A primeira vez numa metrópole. A primeira vez na neve. Primeira vez naquela praia de gente nenhuma e mar de muita espuma. Primeira vez naquele poço que despencava água e congelava a perna. Primeira vez naquele restaurante com vela e piano. Talvez isso também a apaixonasse. O que será que Alice gastava mais? Viajar ou passar pela primeira vez? Bom, se a segunda opção fosse a verdadeira, Alice não gostaria tanto de retornar aos lugares que conheceu. É, retornar também agradava Alice. Sonhar com um lugar, desejá-lo, sentir saudade do cheiro, do gosto, do frio ou do calor e, finalmente, estar de novo lá. Talvez por isso, Alice goste tanto das festas de Natal e São João. Alice espera e elas sempre chegam. Enquanto isso não acontece, Alice se delicia com a saudade das luzes, dos presentes, do cheiro de infância, do gosto do bolo. Se não com isso, com o gosto da pamonha, com a saudade do forró, da alegria das pessoas. Ai, Alice sentia um aperto, uma saudade do mundo. Aquele mundo que era tão seu, mas só de vez em quando. Só nas festas, só nas viagens. No resto do tempo, Alice incomodava-se com o calor, com a falta do que fazer, com as notícias ruins do jornal. Bom, Alice não quer mais se angustiar, ocupar seus pensamentos com o que a consome. O que fazer? Pegou a câmera fotográfica para fazer o que mais gosta: descobrir o mundo.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Alice entrou no ônibus. Estava sem pressa. Uma moça levantou e Alice descansou em seu lugar. Olhou em volta, várias pessoas em pé e um lugar vazio à frente. Perguntou-se o que acontecia. Ao lado do vago, uma senhora. Pele branca, vestes de velha, bolhas no rosto, secreção cor de laranja. Alice entendeu a situação. O ônibus parou e, em meio às pessoas que subiram, um menino grande de baba no queixo e mãos retardadas. Sua mãe não o aguentava mais no colo. Sentou-o ao lado da senhora. O menino olhou para a velha e sorriu. Ela, aliviada da sua solidão, sorriu também. Olhavam-se e, por instantes, suas almas se encontraram. Sentiam-se iguais, gostavam da presença calada um do outro. Satisfaziam-se com a luz que seus sorrisos se deram. Nada mais precisou ser dito. Era ela e ele no ônibus inteiro. Seus olhos conversaram. Oi, achei a senhora bonita. Achei você esperto. O que fez hoje? Voltei de um exame. Eu também. E então, tudo bem? Os médicos disseram que não sabem o que tenho. Para mim, disseram que não tenho jeito. Gostei de te encontrar, geralmente não consigo me comunicar. Você também me fez bem, estava me sentindo sozinha. Sabe que achei o dia colorido hoje? Achei um dia de saudade... A conversa continuava, os olhos eram tagarelas e os sorrisos fofoqueiros. Alice tinha que saltar.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Ela sentou. Leu. Lembrou. Um reencontro deixou tudo mais recente. Depois de tanto tempo, o reencontro. Quantas vezes reencontraram-se! Tantas vezes que talvez ela nem se lembre. Alice sabe que não precisa estar longe para que exista o desencontro. Abraços. Abraços. Abraços. Olhos fechados. Podia lhe dar mais. Podia dizer mais. Não, não podia. A amizade entre eles nunca poderá ser entendida. Nem por ela. Até quando eram irmãos? Até quando eram amigos? Até quando? O que Alice podia esperar depois de tantos desencontros? Só sentia. Sentia por todos os amores secretos que não viveu por falta de coragem. Sentia por não ter se oferecido mais. Ela não sabia mais o que queria. Queria alguém para enxugar suas lágrimas? Sua vaidade a fazia tê-los? Não sabia. Talvez, quisesse todos. Sabia que não podia. Eles não aceitariam. Ainda podia lembrar dos momentos. Momentos em que era só ela e ele. Cada um tinha seu momento com ela. Será que num instante é melhor ter outro momento? Talvez. Em meio a tantas renúncias, talvez seja melhor interromper e começar diferente. Tê-los na lembrança e só. O que ela esperava do amor agora? Alice não sabia. O amor antes tão desejado, estava agora desacreditado. Flores foram dasdas, palavras confiadas, o corpo, o sentimento. Tudo foi entregue. Renúncia às reivindicações. Será que o amor precisaria ser assim? Alice não sabia. Antes, esperava um amor para toda vida. Agora, nem sabia para que caminho ia sua vida, como poderia achar que alguém a acompanharia? Alice tinha na conta, alguns homens que a amaram. Os outros foram amores não correspondidos de uma parte ou de outra. De fato, poucos a tiveram. Talvez, nem tivessem todo o amor dos outros. De que adianta números? Muito? Pouco? Alice sentiu-se amada. Mas, e o amor que ela tinha para oferecer? De que adiantava ser amada? O que adiantava ser ouvida, o que importava ser conhecida? Se eles sabiam que quando ela estava nervosa, espirrava, ou se sabiam que quando ela bebia sua orelha ficava vermelha? O amor era só isso? Compreensão e intimidade?Alice queria frio na barriga. Alice queria sorrir à toa. Pode alguém viver assim? O amor deixa alguém eternamente nesse estado? Alice não sabia o que esperar da vida. Ainda não estava certa do que queria. O amor se foi? Disso, Alice não sabia, mas sentia que a resposta estava próxima, muito próxima.
Alice encontrou sua caixa de lembranças. Revirou seu pouquinho de história, suas memórias esquecidas. Achou o diário da adolescência. Leu: "E chega uma hora em que as coisas não fazem mais sentido. E outras coisas fazem sentido. O lugar, o coração têm outro sentido. O lugar, o sonho, a identidade. Os gostos, as alegrias, os medos. Fazem do lugar mais lugar. A riqueza do momento. O pai, a mãe, a irmã. E tudo se transforma em chuva de individualidade. Um mar de descobrimento e a tranquilidade de se conhecer. Transparente e opaca. Mudança e dúvida e mudança. A timidez, o amor, os amigos. Os raros caprichos em meio à tolerância. Os sentimentos feios e bonitos. A alegria de permitir pensar feio como rebeldia a todos os rótulos adequados e incabíveis. E o pensamento bonito mais presente que o pensamento feio. Antes virgem pálida, agora interessante? Talvez interessante por fora, talvez com medo por dentro. Antes sozinha e sem identidade. Agora acompanhada. Com identidade, ou sem identidade? Amor como brisa ou tempestade? Convencional ou moderno? Para sempre? Para sempre e momentâneo. Seguro e impactante. O lugar. O espaço. A fraqueza entendida, temerosa, mas feliz já que entendida e clara. Mais leve. Pesada também. Sem certeza do que é ou vai ser. Com medo do que vai embora. Feliz com outras coisas". Alice pensou. Não entendeu algumas coisas. Pensou. Leu. Se reconheceu. Embora muito tivesse mudado, lembrou, entendeu. Ali estava ela. Igual e diferente. Percebeu que continua com medo. Talvez outros, talvez os mesmos. Talvez tenha medo e nem saiba exatamente de que. Mas sabe que, embora não queira, sua atitude ainda é de pouca coragem. Sabe que os sonhos ainda são poucos, são confusos, mas sabe que tem um pouco mais certeza de quem é, da sua identidade... Dá risada dela mesma. Se achava interessante? Ah, Alice não era interessante, agora sabe disso. Tantos e tantos medos, tão poucos caprichos. Mesmo assim, conseguiu algumas amizades. Com toda sua dificuldade de sociabilidade, Alice se orgulha dos amigos que conquistou. Alguns ainda continuam até hoje ao seu lado. Da timidez ela sabe que, em parte se livrou, mas sofre quando vê que ela ainda aprisiona, ainda fere. Pelo menos, se permite ter os pensamentos feios e sinceros. Aqueles pensamentos que foi ensinada a nunca poder sentir. Agora, a mãe ou a avó não os reprimem. Pra dizer a verdade, elas nem os conhecessem. Sabe que tem ciúme, sabe que sente inveja. Talvez agora, sinta mais do que antes. Agora se permitiu. Mas ainda é difícil admitir que os tem. Alice sabe que é desconfiada. Não sente-se confortável com quem acabou de chegar. Mas é só no início, depois, se destranca do seu mundo e abre a porta para o novo entrar. Os gostos também mudaram. Quanto ao amor e ao lugar... Ai, ainda não sabe onde colocar. Medo?