terça-feira, 31 de março de 2009

Conversa com intrometidos

Alice, por que você se deixa ser escrita? Cansei de diários. Mas e se as pessoas te descobrirem? Só quem quiser. Mas, e se pensarem ruim de você? Essa sou eu, o que fazer? Logo você que se irrita de ser falada? O critério é negado a alguns e concedido a outros. Você sabe o preço que pode pagar? O preço de viver. Não tem medo? Medo sempre tenho, mas cansei também dos medos e não quero que se preocupem comigo, cuidem de mim, cresci. Posso me oferecer se quiser, viver tanto, se quiser, tomar chuva, comer pouco ou muito. Posso brigar, amar. Não quero medo. Cansei. O que vai fazer agora? Ainda não sei. O que gosta de fazer? Ainda não sei. Esquece o que gosta, vai morrer de fome é? Não sei, acho que não. Vai ser sustentada pelo marido? Até que podia, não ligo para feminismo, mas posso cansar de fazer nada. Além disso, quero minha liberdade. Vai tomar um sol. Não gosto. Não gosta? Pois é, ainda bem que as pessoas são diferentes, não acha? Você é esquisita. Pode ser, não sei. (Você está gorda. Adoro comer.) (Você está muito magra. Gosto do jeito que sou.) Estava dormindo? Estava. Você é prequiçosa. Um pouco, mas acho sua colocação agressiva, não me venha com suas verdades. Não tem o que fazer? Tenho, já vou. O que é isso Alice, seja doce. Está bem, vou tentar.
Alice chegou na sala de espera. Viu que não estava sozinha. Alguém também esperava. Boa tarde. Boa tarde. Sentou. Estava com calor, mas não é do tipo que toma iniciativa de puxar conversa, sente-se mais confortável de ser procurada, sobras de timidez. Silêncio. Alice ficou constrangida. Pegou uma revista. Talvez, se estivesse sozinha, não quisesse ler, mas não sentia-se confortável para fazer o de sempre (devanear) na frente de um estranho. Enquanto lia, pensava na situação. Será que eles esperavam a mesma coisa? Será que o silêncio, tão íntimo que é, poderia ser dividido com um estranho? Afinal de contas, poderia alguém que nada tem a ver com Alice, observar o ritmo com que passa as páginas, ou imaginar por qual reportagem Alice se interessou? Ao mesmo tempo que se impressionava com a intimidade/impessoal, lembrava da viagem de ônibus que fez. Sentou, tirou os sapatos, esticou a perna. No colo, um livro; na frente, uma linda paisagem; ao lado, um estranho. Como Alice podia sentir-se confortável? Na sua cabeça, milhões de pensamentos apostavam corrida, pisoteavam-se. Pensava-se observada. Apesar de estranho, até que gostava Dormiu. Depois, pensava. Ele nem a conhecia para que tanto lhe fosse dado: olhos fechados. Nem sabe de que ventre ela veio. Nem sabe que ela já não ouve as mesmas músicas de antes, ou que os seus sonhos sentem-se ultrapassados. Nem sabe que ela não permite que alguém (sem permissão) opine em sua vida, e que, por outro lado, concede acesso ilimitado a alguns. Nem sabe que não existe critério para isso. Ele olhou. Sorriu. Não falavam a mesma língua, mas entendiam-se. Ele tentou falar. O critério foi usado: negado. Preferiu apenas continuar sendo observada. Será que ele a imaginava melhor ou pior do que realmente era? Será que gostava dos seus movimentos? Alice. Alice. Pode entrar.

sábado, 28 de março de 2009

Na infância, Alice tinha um quê de tristeza. Calava-se. Subia na árvore e ficava só. Talvez triste, talvez em paz. Subia quando tinha tristezas de criança. Período de separação. Na adolescência também tinha um quê de tristeza, mas a árvore não existia mais para ela. Existia para outros. Hoje, Alice ainda tem tristezas. Tristeza pelo desejo não descoberto... Agora, sabe que a vida não é fácil. Quem falou que seria? Não lembra. Mas, descobriu, embora já ouvisse pistas, que a dificuldade pode ser amenizada. Descobriu quando percebeu, despretensiosamente, a música de um pássaro. Música com sutis cadências de engano. Não muitas. Esse era simples, sem muita criatividade. Simples como Alice. Simples como as férias compartilhadas com os primos na casa de praia. As conversas com a irmã. Um fim de tarde, sol morno, ondas pequenas e a criança que pega a mão de Alice. O futebol na areia cinza e a vó entregando a bucha para tomarem banho. As brincadeiras na fazenda. O "gato-mia". A conversa com o amigo. As brigas e reconciliações. O cinema e o brigadeiro. O ensaio semanal. A conversa constante. O caminhar no vento. A música da mãe. O beijo demorado. O frio na barriga. A viagem de carro. O banho de cachoeira. As flores recebidas. O cachorro no café-da-manhã. O olhar do pai. O choro aclmado pela irmã. A conversa na calçada. Alice descobriu que além das tristezas, a vida era também, simplesmente feliz.
Quando era adolescente, Alice sabia que era "virgem pálida". Tinha aquela palidez de quem nunca gostou de sol, aquela palidez diante da vida. Atitude de virgem. Achava que tinha que ser. Seus sentimentos já eram intensos, é verdade, mas sempre guardados, calados, presos. Por isso era tanto. Tudo sufocado. Quando conseguia colocá-los para fora, sentia-se bem, mas tinha medo. Até hoje não consegue colocar em palavras algumas coisas. Chora. Um choro que é vômito: colocando pra fora à força. Colocando para fora a força. É, na adolescência, Alice tinha medo. Medo de compartilhar, de se revelar. Hoje, Alice se permite, se oferece. Por isso quer ser solteira, para se oferecer ao outro. Sabe que a monogamia é renúncia e ainda não decidiu se quer abrir mão da liberdade, de reivindicar o olhar. É, o olhar que vem e vai, quase que nem o vento. Então, pode olhar e ser olhada. Não sabe do que gosta mais. Acho que de ser olhada por quem é alvo do olhar. Alvo que desperta o interesse em meio a todo devaneio que a toma, a rouba dos lugares. Dentre ainda tão poucos interesses, desejos conhecidos, o olhar já é entendido e. O olhar que traz consigo a verdade, o encontro. Tão bom quanto uma brisa num dia de calor. Tão refrescante quanto a chuva que. Alice ainda lembra da primeira vez que encontrou a chuva. Lembra da primeira vez que sentiu-se só com ela. Um sentimento de cumplicidade a invadiu. Antes não se encontravam. Alice saía, a chuva ameaçava fazer-se conhecida à força, mas só acontecia quando Alice chegava. Quem evitava quem? Até que um dia caiu, mas Alice estava tão entretida que não percebeu. Alice a evitou. No dia seguinte, levou guarda-chuva. E ela foi presenteada. Durante a infância, o guarda-chuva era sempre dividido: ela, a mãe e a irmã, sensação sempre de acolhimento, poucas oportunidades de solidão com ela mesma. Agora estava só. Aliás, acompanhada da chuva. Sorriu. Estava feliz. Eram só as duas. Podia ouví-la. Um breve momento de silêncio em seus pensamentos. E logo eles a devoravam novamente, mas, em seus devaneios, não estava mais sozinha. Havia um frescor. Havia um som que era marcação para sua muda fala. Seus pensamentos agora tinham uma base. Eram pensamentos de chuva. De chuva não, de Alice. Era como se além dela mesma, algo mais a escutasse. Sentiu-se olhada, refrescada. Tempos depois, andava pela rua quando avistou um Preto Velho. Um Preto de chapéu, cheiro de fumo e ar de velho. Alice adorava aquela figura. Parecia-lhe familiar. Lembrou-se dos tempos em que passava as férias no interior de seus avós. praça. crianças. geladinho. croché de vó. fogueira de vô. brincadeira. igreja. quintal. Preto Velho. Quando voltou de suas lembranças, avistou um guarda-chuva vermelho. Ela sabia que não precisava. Já tinha. Mas, vermelho não tinha nenhum. Comprou do Preto Velho mesmo sabendo que o período de chuvas já tinha acabado. Ele ficou feliz. Ela também.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Quem é Alice?

Alice não quer mais voltar pro país de origem. Às vezes tem dúvida, mas prefere achar que o país do "De Verdade" é inevitável. Começou a sofrer com os indícios de que tudo que acreditava era falso. Atualmente, se incomoda quando vê moradores do seu antigo país. Talvez seja uma saudade, uma nostalgia. Não tem jeito. Alice agora vive em outro lugar, com outras regras, outro funcionamento. Às vezes, sente-se muito perdida, muito angustiada. Está sem referencial. Sabe que agora NÃO QUER SE IMPORTAR COM O QUE OS OUTROS PENSAM DELA. Não sabe mais se é católica. O país do "De Verdade" a deixou muito materialista. Sempre agiu conforme sua ética e continua assim. Não sabe mais quais valores deve ter porque se surpreende com opiniões que antes não a pertenciam. É, ela tem opiniões fortes e por isso não sabe se ela tem as opiniões ou se as opiniões a tem. Tem vergonha de algumas. Acha que algumas pessoas não gostariam. Pois é, se esquece de que decidiu não se importar mais com o que os outros acham dela. Tem dúvida se é melhor continuar sendo tímeida, ou continuar sendo espontânea.. Ela tem um pouquinho dos dois mas quer decidir o que deve prevalecer nela. Brigou com Poliana. Acha que não dá certo a amizade porque agora pensam diferente, mas às vezes tem recaídas. Ainda é amiga de Lisbela porque gostam de falar do mesmo assunto (cinema), mas não quer mais ir no interior e por isso não se encontram. Ah, essa é a sua dificuldade: se encontrar com ela mesma. Nem sabe se conseguirá, então, enquanto isso não acontece, vive com os pequenos prazeres que não exigem muito dela: caminhar à noite, comer um bom doce, estar com as amigas ou com a família. É ela ainda come doce, mas não tanto quanto antigamente. Antes era gordinha, era "A Feia", agora melhorou. Dez anos se passaram e ainda vê que tem coisas da "Feia". Tem mania de Dorothy, adora um sapato (ou tênis, ainda usa de vez em quando) vermelho. Antes gostava de cor de rosa, achava que era cor de menina, mas depois de Lóri, achou que o vermelho caía melhor nela também. Sabe que seu nome é de flor, e já disseram que ela é delicada como uma, mas não sabe mais se continua sendo porque nesse processo de mudar de país, ficou um pouco agressiva. É porque não sabe mais como reagir a determinadas situações de agressões permitidas. Vive vivendo agressões permitidas. Essas agressões sutis que as pessoas fazem e as outras não vêem nenhum problema nisso, mas que ela fica profundamente ofendida e acaba reagindo de forma não permitida. Bom, ainda gosta de chuva, ainda gosta de guarda-chuvas e cobertas. Gosta de viajar e colecionar fotografias felizes. Queria saber tocar piano e sapatear. Queria dar conta de tudo, quem sabe até controlar, ter garantia de felicidade. Quando está muito cansada, queria ter um vácuo de tempo, onde o tempo real congelasse e ela pudesse ir e voltar mais descansada, pra retomar de onde parou sem danos. Queria gostar mais de "dividir os brinquedos". Os adultos fazem isso mas ela não se permite. Experimentou "a água" que fazia sentir-se bem, como se estivesse de novo em seu país. Gostou, mas sabe que não pode bebê-la. Aprendeu que pode beber a água de Aurora, mas mesmo gostando e sabendo que é permitida porque já tem idade para isso, tem vergonha se relaxar demais. Não gosta que falem sem sua presença. Também não gosta que falem mal dela (por conta das recaídas sobre não ligar para o que os outros pensam). Não gosta de ser falada e, por ser também difícil falar de si, é que ela existe.