terça-feira, 20 de outubro de 2009

Não se preocupava com a morte. Isso não passava pela sua cabeça porque pensava mais na vida. Esta era muito mais interessante para ela. Se houvesse ou não algo além da vida, pouco lhe interessava. Talvez, ser criada por um pai que dizia que o que importava a ele era o que tinha feito e vivido, tivesse contribuido para esse entendimento. O fato é que, nos últimos tempos, perguntava-se "para que viver?". Pensava no que fazer dos seus dias. Era muita angústia e o pensamento de morte e o pensamento de vida, até Alice perceber que cada pessoa vive para uma coisa. Uns nascem para crescer, reproduzir e morrer. Outros para produzir, outros para amar, outros para aprender, outros para jogar a vida fora. Uns para fazer dinheiro, uns para fazer sonhos, uns para não fazer nada. Alguns são leves, alguns são pesados... Foi pensando na possibilidade da morte que Alice lembrou do que a mãe disse num desses momentos de felicidade para ela: para que morrer? É que a vida parecia tão boa naquele momento que até poderia ser eterna.Alice sorriu. Apesar de saber que algumas pessoas desistem da vida, sentiu-se autorizada a viver. Para que viveria? Sabe que a vida lhe parecia dura, mas bonita. Gostaria de viver fazendo arte. Achou que por esse motivo valeria a pena viver. Nada do que se faz, se leva, mas a arte sobrevive. Permanece em cada pessoa que foi tocada pela mensagem. Ainda que toque apenas uma pessoa, sobrevive em cada próximo fruto por quem se iluminou da arte de alguém. Uma pessoa que usou uma cor porque determinada palavra que ouviu germinou-a. Ou a palavra que veio inspirada por uma melodia que um estranho qualquer ouviu numa caminhada de fim de tarde a flutuar em algum lugar. Tudo isso é eterno, ela sabia. Ainda que Alice vivesse sem arte nenhuma fazer, gostaria de viver, mesmo que só para admirar.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Nos últimos meses, Alice havia envelhecido anos. Sentia-se diferente. A primavera chegara e ela ainda não conseguira olhar as flores. Estava atenta à vida. Sempre tentou evitar os riscos e, por isso, viver era algo quase como colar os cacos de um copo de vidro. De pouco em pouco, com cuidado para não se cortar. Tudo lhe causava medo, todo cuidado era pouco para não se ferir. Amava em silêncio, aparecia pouco, desejava pouco, falava pouco. Nos últimos meses, mais do que nos últimos anos, quando Alice já podia revelar-se, amou mais, feriu-se mais, falou mais. Agora, quando sorria, Alice fazia mais consciente do mundo. Sabia que se seu sorriso era doce, tratava-se de uma doçura diferente. Entendia a vida de outra forma. Sonhar com o vestido que usaria, ou com tudo que poderia fazer caso nada pudesse lhe impedir, ou com a viagem dos sonhos, ou com um amor antigo, ou com tantas outras coisas possíveis naquele mundo que às vezes era tão inacessível aos outros, lhe parecia bobagem. Nada lhe resgataria do País do de Verdade para seu antigo país. Agora, compreendia a vida de outra forma, e, para ela, esta era uma sucessão de dias mais ou menos felizes, com mais ou menos dificuldades, com alegrias e tristezas. Embora soubesse que o mundo não é cor-de-rosa, sempre evitou olhar para as tristezas. Preferia continuar colando o copo. Quando Alice se mudou de país, se permitiu jogar o copo no chão. Ficou com raiva numa discussão, deu um último gole e quebrou com pouca culpa. Nem os cacos recolheu. Sabia que era inevitável olhar para as coisas tristes da vida pois elas de fato existiam e também faziam parte do dia-a-dia. Alice aprendeu a enfrentar os medos, a ser mais tolerante com as pessoas realmente importantes. Aprendeu que não se tem poder sobre todas as coisas da vida e que ela própria não é um copo. Aprendeu que as coisas complexas não chegam sozinhas e que as coisas simples estão disponíveis. Olhou as flores que começavam a sair. Viu uma praça, um cachorro e vários pombos. Os pombos a insistirem nas migalhas, o cachorro a insistir nos pombos. O ônibus fez uma curva e o chapéu do senhor vôou. Olhou um menininho contando história para um bebê de colo e o bebê sorrindo. O mundo estava igual. Alice estava diferente.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Alice dançou. Há tempos não dançava... não suava... Dançou. Seus braços e pernas pareciam se entender. Um podia ir só. O outro podia ir acompanhado. Os dedos movimentavam-se, as mãos, o corpo. O corpo encolia e logo estava livre. Fechava e logo estava novamente feliz. O braço ia longe e podia alcançar o que Alice nem sabia, mas com certeza podia alcançar. O corpo paquerava Alice, como se dissesse o que Alice tinha esquecido. Os pés percorriam parados. O pescoço rodava. Deitada. Sentada. Podia sentir-se livre. A música era singela e pouco ela ouvia porque o que ela sentia de verdade era a si própria. O corpo ia para um lado e levemente passava para o outro. Espreguiçava, dançava. Não era ballet, não era nada que pudesse dizer o que tinha de ser. Era apenas o que Alice queria. Apenas isso. Braços que sobem, dedos que escrevem o ar num dialeto incompreensível. Se Alice estivesse falando naquela hora, se estivesse mudamente falando, podia bem entender. Falava que o corpo que estava anesteziado, agora dançava. Falava que gostava quando os olhos eram pintados, ou quando as unhas estavam vermelhas. Falava que gostava de cor. Falava que gostava de vento, de suor, embora só com muito esforço, Alice conseguisse suar. Seu cheiro era só quando acordava. Um cheiro bom de sono. Às vezes ela podia sentir. Quando suava, cheirava a água. Naquela hora, sentia os cabelos passarem pelo rosto levemente. Passavam pelo queixo, pelos olhos. Nunca tinha sentido como eram tão finos... Gostou de não tê-los encolido. O vento mal tocava a nuca. Ponta do pé. Perna esticada. Barriga. Braço alongado. Dobrava-se. Era um origame ansioso, que ora estava de um jeito, ora de outro. O corpo de Alice falava e ela mal tinha ouvido. Agora, ouvia. Dizia que queria ser percebido, reclamava atenção de Alice. O que ela podia fazer para reconciliar-se? A resposta era simples: precisava ouvi-lo.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Alice andou. Ainda era cedo e ela encontrou pelo caminho: uma calça e sapatos usados na calçada, embora o seu dono não estivesse dentro; um senhor carregando um cesto com pequenos peixes, mas que pareciam pesar toneladas; duas pipas dançando no ar, saindo de dentro do ônibus e duas mãozinhas agitadas, empinando-as; uma senhora fazendo sua caminhada matinal enquanto rezava o terço; ondas que se agitavam naquela imensidão azul que mereceu o nome de "mar". Alice impressionou-se com a vida que já havia começado enquanto ela sentia que ainda estava acordando. Gostava de olhar a vida. Estava parada e uma menina de cachos pretos se aproximou. Alice não era do tipo que procurava conversa, mas quando a conversa a achava, ela costumava ser receptiva. A menina tinha olhos curiosos, tudo queria saber, olhos de pessoa inteligente. Disse seu nome, tinha nove anos de idade. Alice já não tinha nove anos de idade há quatorza anos. Falava com Alice e sorria. Queria saber das coisas. Por que você usa isso na boca? Meus dentes não eram muito certos, então, eu usei um aparelho pra consertar e agora, uso esse pra mantê-los corretos. Ela se satisfez com a resposta. Saiu, saltitou, voltou. Você come com ele? De vez em quando. Você escova os dentes com ele? Não. Por que? Você não acha que deve ser difícil escová-los com isso? Elas sorriram. A menina saiu, saltitou, voltou. Olhava Alice curiosa. Você dorme com ele? Durmo. Você sonha? Alice, que já estava impressionada com aquela menina, estava, naquele momento, maravilhada. Como poderia uma criança de nove anos, que não a conhecia, se interessar pela possibilidade do sonhar? Alice era curiosa, mas nunca lhe ocorreu ver alguém e se perguntar se existia sonho... Para Alice, os sonhos eram muito importantes. Adorava sonhar e lembrar ao longo do dia. Adorava rir do seu próprio sonho. Às vezes, o sonho a fazia chorar, mas, em geral, lhe causava curiosidade. Adorava a possibilidade de fechar os olhos e surpreender-se com o que esse simples fato podia lhe oferecer: imagens, lembranças, alegrias ou tristezas. Sonho, você sonha? Sonho. Alice estava ansiosa por saber. Nossa, imagina o sonho dessa menina, pensou Alice. O que você sonha? E, antes que Alice pudesse descobrir, a menina foi chamada pela mãe, num chamado chateado de quem tem trabalho por ter uma filha tão inteligente e tão curiosa por saber da vida. Ela olhou para Alice, lamentou com pouca tristeza não poder continuar a conversa, mas sabia que conversa não lhe faltaria, pois onde estivesse, a conseguiria. Alice sorriu. Estava impressionada e nunca saberia quais as imagens, lembranças, alegrias ou tristezas aquela menina tinha ao fechar os olhos. Conformou-se.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Alice acordou. Dormia fazia meses. Dormia como fazia quando criança, quando sentia uma dor muito forte e não sabia o que fazer com ela. Com a dor. Era forte, cansava, tomava. Foi falar com a índia. Aquela mulher de cabelos cheios, como os que Alice queria ter. Pele alaranjada, como Alice queria ter. Sábia, muito sábia. Como Alice queria ser. Deitada, Alice sonhava, falava, desejava o momento de não mais sofrer. A índia que às vezes lhe desmontava, lhe desvelava, sem medo de que Alice pudesse morrer com suas palavras, falava. Dessa vez, parecia estar mais doce, mais entendedora que Alice já não suportava pouco saber. Às vezes, era difícil vê-la, pois encontrá-la era a possibilidade de se encontrar também, e Alice, como sempre, tinha medo. Mas, de tudo que se falou, o que mais ecoou dentro de Alice foi: o que é seu é seu. E, como num estalo, Alice despertou. Tinha tanto e ainda tanto a ter. Estava disposta, como depois de horas de sono, se bem que no caso dela foram dias... Queria entender o que mais podia ter. Queria muito. E, a dor, que também ela tinha, sabia que era dela e que um dia poderia entender. Mas sabia que tinha uma vida inteira para viver e além disso, nada mais queria fazer.

sábado, 16 de maio de 2009

Ela foi. Engoliu a coragem numa tentativa forçada de chegar. Estar num lugar desconhecido, sozinha, sempre foi desesperador. Lá estava ela então, ônibus com pouca gente, instruções anotadas, atenta ao caminho, inutilmente, pois seu mau senso de direção não seria o suficiente para fazê-la voltar sem motorista. Chegou. O lugar novo, pessoas novas, novo funcionamento. Trabalhar naquele lugar poderia ser bom, pensou Alice. Tudo foi explicado por uma moça simpática. Não tinha como evitar. O medo de assumir a vida, de se libertar da angústia do inevitável tinha que ser superado. Registro Geral, Carteira do Conselho, número da conta no banco, comprovante de residência, tudo tinha sido computado. Pronto, Alice já era uma das funcionárias. O empurrão que Alice sempre precisou para começar algo novo tinha sido dado, ela já estava lá. Sua ansiedade era: quando esse lugar vai se tornar mais confortável para mim? Alice sempre teve pressa. Pressa calada, é verdade. Pressa pouco dividida, mas angustiante para ela. Pressa de gente jovem, com vontade de saber se tudo vai dar certo. Lembrou-se do antigo trabalho. Estágio, é verdade, mas não deixava de ser trabalho. Lugar estranho também para Alice, e logo havia se tornado familiar. Alice deu os seus horários disponíveis no novo trabalho, esperando que aquele monte de secretárias marcassem algo para ela fazer quando fosse lá. Ansiedade boa. Menos medo. Alice entrou no ônibus para voltar. Nem sabia por onde passava, até que sentiu-se segura: estava em frente ao antigo trabalho. Saltou, resolveu pegar outro ônibus de lá. Sentiu uma calma depois do medo da morte. É, medo de morrer, medo do desconhecido, medo de assumir sua vida, de adultecer. Era tão confortável para Alice aquele lugar onde tudo era conhecido e entendido. Semana que vem, aproveito para voltar aqui, pensou Alice. Sabia que tinha coisas para fechar. E como era difícil fechar aquela janela! Alice gostaria de não precisar fechá-la. Marcou, e na semana seguinte lá estava: medo nos olhos, saudade no peito, conformada. A sensação de Alice era de que nada tinha mudado. Seis meses haviam se passado e parecia que tudo continuava igual. A mesma recepcionista, a mesma cor na parede, o mesmo som da vassoura na hora de pouca gente, o mesmo sorriso das pessoas. Tudo isso eram "coisas" que faziam daquele lugar o espaço que ela ficou um ano e que tanto aprendeu. Dessa vez, Alice mudou de lugar, sentou para esperar na recepção. Enfim, chegou quem ela precisava ver. Gostou de ter sido abraçada por ela. Sentia falta dos seus ensinamentos, dos almoços de supervisão, e às vezes de conversas pessoais. Para Alice, era bom vê-la novamente: a mesma leveza, o mesmo jeito de falar, o mesmo jeito de rir das coisas. Alice trabalhou, concluiu. Entregou a chave do armário, acabava de fechar aquela janela da vida que precisava ser fechada. Era como se a vida fosse um casarão cheio de janelas, onde em cada uma podia se ver um momento da vida. Casarão de janelas trancadas em que jamais poderia ver novamente os pais casados. Ou janelas entreabertas, que em cada situação de constrangimento atual, fazia abrir o sentimento da adolescência insegura, e que por mais que muitas sessões de análise tentassem trancá-la, ela insistia em se escancarar quando algo a fazia sentir tão pequena como naquelas situações de desamparo que viveu. Pronto, Alice fechou a janela e imaginou que ela iria para o corredor de janelas que Alice gostava de abrir, mas que provavelmente acabaria por ser pouco aberta ao longo dos dias de responsabilidade e novos contextos. Aquelas janelas que poderiam ser abertas mais vezes mas que só eram abertas quando um cheiro, uma frase, ou alguém fosse reencontrado. Janelas que mareavam os olhos e a faziam sorrir. Estava pronta para voltar pra casa. No ponto de ônibus, o mesmo cheiro de acarajé, pamonha, sorvete, pipoca. Os mesmos vendedores continuavam a vender no fim de tarde, os mesmos ônibus continuavam a passar, e ela, esperava. Esperava a hora em que seu novo lugar fosse tão íntimo como aquele.

sábado, 9 de maio de 2009

Entrou no ônibus. Já tinha feito tanta coisa pela cidade. Sentou. Ônibus vazio, dia ameaçando terminar. Pensava. O ônibus parou. Entrou aquele homem: cabelos descontraídos, calça jeans, camisa branca, sapato. Alice não lembra-se qual era o sapato, lembra-se apenas de que o rapaz parecia ter saído de uma revista. Olhou. Ele perguntou para o cobrador. Esse ônibus passa na Barra? Sim. Quando Alice deu-se conta, o sim tinha saído da sua boca. Que sim dizia? Logo ela que é tão tímida para contatos iniciais. Por que respondia a quem nada havia lhe perguntado? Envergonhou-se, olhou para a janela. Sentou perto dela. Pensamentos em sua cabeça como de costume e o pensamento já não era mais ele. O ônibus entrou no caminho do mar e a moça em sua frente levantou-se. Ele sentou-se em seu lugar. Tantos lugares vazios havia se aproximado. Olhou para ela que olhava para o sol. Bonito, não é? Por algum motivo, Alice estava cheia de atitude. Ele concordou. Como é seu nome? Alice, e o seu? Florêncio. Conversaram. Era o homem mais lindo que já havia olhado para Alice. Ela até esquecia-se do amor no interior, do amigo-colorido, todos os homens que ela amava, que admirava, haviam sido esquecidos naquele momento. Ele perguntou qualquer coisa que ela não podia mais lembrar, mas que havia respondido de forma a não deixá-lo perceber todo o encantamento. O caminho parecia maior que o de costume. A orla parecia ter crescido. O meu ponto está chegando, o que acha de saltar comigo para terminarmos de ver o sol cair? Ela pensou. O que diria? Queria ir, mas tinha medo. Medo de que? Saíria com um estranho que de estranho não tinha nada? Saíria com aquele homem lindo que convidava-a calmamente para ficar junto dele? Enquanto as dúvidas passavam o ponto também passava. Ele continuou em sua frente esperando sua resposta. Alice ainda não podia responder. Pensava e em sua frente, Florêncio esperava. A calma havia sumido porque o ponto seguinte havia passado. Alice, você vai? Ela não sabia. Queria mas não podia. Toda ansiedade do querer mas não poder estava em seus olhos e refletia-se no dele. Outro ponto e ele falou. Três pontos se passaram, preciso saber se você vai comigo ou terei que ir sozinho. Não vou. A tristeza a invadiu. Onde estava toda atitude? Onde estava o sim que tão facilmente saiu da sua boca quando nem precisava sair? Ele apagou-se. Pegou o celular e mostrou-lhe. Você pode me dar seu telefone? Ela pensou. Não sabia se deveria. Alice, não posso perder mais um ponto. Tanta angústia se passava. É inviável, ela disse. Ele olhou sem raiva e levantou. Saltou. Ficou parado em frente ao ônibus e olhou para ela que ia quase que sem ir, quase ficando lá. Despediram-se. Alice sabia que era a única vez que veria Florêncio. Não sabia o que sentia exatamente. Estava envaidecida? Estava triste? Uma coisa não saía da sua cabeça: "Inviável".

terça-feira, 5 de maio de 2009

Era de noite já. Alice estava no carro, ele do lado de fora. Sua altura era suficiente para olhar o rosto dela sob o vidro da janela. Alice também olhou. Ele pediu qualquer coisa que ela não podia entender mas podia imaginar. Quantos anos será que ele tem? O que faz a essa hora na rua? Respondeu que não tinha. E sentiu-se mal. Não porque tinha que dar, não porque se deve ajudar aos menos favorecidos. Sentiu-se mal porque ele tinha olhar de criança. Era uma criança pedindo alguma coisa e ela dizendo "não". Lembrou-se do pedaço de torta que sobrou do lanche no shopping. Não era resto, ela comeria quando não tivesse o que fazer em casa. Queria assegurar-se de que não estava dando esmola. Olha, eu comi um pedaço de torta muito gostoso e quero te dar a outra parte, você quer? Ele pegou e saiu pelos carros. Ela o acompanhava com o olhar. Será que ele ia comer? Será que ia gostar? A ansiedade era enorme. Talvez tivesse a mesma ansiedade que sente quando está prestes a ver a reação de um presenteado diante do inesperado. Carros, pedintes e ela não conseguia vê-lo. Viu que uma mulher e uma menina, menor ainda do que ele, se aproximaram. Viu ele apontar para o carro onde Alice estava. A mulher se aproximou, a menina de mão dada. Ela arrastava a menina como quem arrasta um sapato mal abotoado. O sapato mal abotoado arrasatava o creme na boca. Alice gostou, pelo menos tinha sido provado. A mulher falou algo que ela não podia entender e saiu. Alice só ouvia: e ele? Será que ele gostou? Levantou-se e foi na direção dela. Minha mãe mandou dizer obrigado. Ah, então era isso que a mulher falava para Alice. Ele não disse mais nada. Parecia até criança educada por vó rigorosa: não fale com adultos, não diga o que não te perguntaram. O sinal havia dado consentimento para passagem e os outros carros atropelavam-na, ela precisava ir. Não tinha como perguntar seu nome, ou se ele tinha gostado. Não pôde saber como ele entende a vida. Mesmo assim, ficou feliz de ter adoçado a boca daquele menino.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Ela quase não sonhava mais com sua falta de ar. Fazia tempo que Alice não sonhava que o ar estava acabando e que ela iria morrer. Todos aqueles sonhos estranhos em que seus piores medos tiravam-na o ar, fazia tempo deixavam-na dormir em paz. Feriado. Casa de praia. Casa fechada há tempos. Poeira. Pela primeira vez seu sonho de falta de ar foi induzido pelas circunstâncias empoeiradas de um fim de semana prolongado. No sonho, ela era trocada. Alice há tempos não temia ser trocada pois andava pensando em trocar. Lembrou-se das conversas com seu reflexor. Havia inventado esse apelido para nomear o amigo que tanto lhe causava reflexões. Achava que ele devia ser analista pois, como Freud disse, um analista deve ser opaco como um espelho e não mostrar nada além do que lhe é revelado. As palavras podem não ter sido essas mas a idéia caminha por aí. Como Alice já tinha sua analista, ele era seu reflexor. Pois é, lembrou das conversas com ele. Concluiu: será que a vontade de trocar era o medo de ser trocada? Alice não sabia. E talvez não precisasse saber. A angústia de Aice vinha da vontade de colocar nome em tudo, de entender. Era tão fácil quando pensava, estupidamente, que o amor era o suficiente. O Reflexor disse-lhe que parecia desacreditada no amor. Ela sabia que o amor e todas as outras coisas da vida tinham a mesma relação com ela: tudo era como tomar banho de piscina. Ela resiste para entrar, mas depois não quer sair. Bem que Alice gostaria de ser diferente. Gostaria de ter com tudo, a mesma alegria que tinha com algumas poucas coisas. Achava que o problema podia ser com ela e não com as outras coisas da vida. A analista interpretou. Você oscila entre a tristeza profunda e o "está tudo bem". Interpretação mais cortante que faca em uva. Entra com dificuldade, mas depois que corta a casca, penetra de um jeito que não tem jeito, já está dentro. Alice parecia se desmanchar num pôr do sol. tudo que estava calmo em sua angústia, agitou e angustiou ainda mais. Aquela cor parada sob o mar, alagou-se. Alice estava agitada. Falou muita coisa ao Reflexor. Tantas coisas que ela nem lembrava mais. Achou até que o assustaria. Ao contrário, chamou-a de forte e bonita. Era tudo que Alice precisava ouvir. Estava pronta para pegar ar e continuar vivendo no "está tudo bem".

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Alice lembrou-se daquele senhor: chapéu, suéter vermelho, sorriso no rosto. Sentiu saudade. O encontro se deu em outro país, em outra língua. Ela estava feliz. Era a sua primeira vez com a neve. Numa fantasia quase infantil - se é que desejos são apenas para crianças - ela imaginava como seria a sensação da neve. Imaginava pegá-la, experimentá-la. Lá estavam as duas. Alice admirava, sorria. A neve se oferecia. Alice queria esquiar! Entrou no táxi do senhorzinho. Ele muito simpático, Alice encantada. Os olhos dela sorriam. Ele olhou. Primeira vez que vê a neve? Sim, dá para perceber, não é? Sim, sugiro que abra um guarda-chuva de cabeça para baixo e depois desvire em cima de você. Eles sorriram. Ela adorou, tinha certeza que se tivesse guarda-chuva naquele lugar, assim o faria. Você tem que comer a neve se quiser voltar aqui. Já experimentei. Alice respirou confortada. Voltarei. Conversaram. Era tão boa aquela sensação. Ele mostrou o lugar mais barato para alugar esqui. Brincou. Fotografou. Alice estava apaixonada por aquele senhor que tanto a fazia lembrar. Lembrou do seu vô. Ainda tinha dois. Um era quente, não tinha frieza. Nunca brigou com ela. Ao contrário, sempre a agradou. Quando era mais novo e Alice criança, fazia molecagens que a divertiam. Ela adorava vê-lo. Achava que ele era tão bom quanto qualquer idéia de Papai Noel que pudesse ter. Seria um Papai Noel nordestino, é verdade. Tinha a simplicidade de um. Alice sabia que com esse, era mais uma neta como outra qualquer, mas se orgulhava de como a chamava: boneca. O outro, era frio por fora, quente por dentro. Não conhecia muito carinho, mas aprendeu a deixar Alice chegar perto. É verdade que as tentativas foram grandes até que ele pudesse lidar com o fato de que Alice tentava e, por isso, a ele só restava deixar. Lembrou dos passeios, das brigas, dos presentes. Em meio a tantos netos, Alice sabia que ele gostava dela de um jeito especial. Ele achava graça de suas graças e ria quando ela chegava feliz. Era essa a sensação que Alice tinha naquele momento: frio por fora, quente por dentro. Apesar de toda roupa, podia sentir frio, mas nada se comparava ao quente que tinha por dentro. Um quente de algria grande, dessas que tomam e deixam o sangue correndo. E lá estava, com aquele senhorzinho que conversava com ela mais do que qualquer vô seu jamais conversou. Revelou seu apelido: El Conde. Ela achou engraçado. Deixou-a e combinou de pegá-la. Alice não cabia em si de tanta euforia. Esquiou, caiu, brincou. No horário combinado, lá estava ele e ela tão longe ainda. E se ele pensar que ela não cumpriu o acordo? E se ele for embora? Correu com aqueles sapatos que mais pareciam sapatos de astronautas de tão vagarentos. Correu como quem corre para chegar no horário para não levar bronca da mãe. Chegou, mas nem conseguia falar de tão cansada. Ele não a entendia. Calma. Certo, a demora é para devolver tudo que aluguei. Espero. Ela respirou. As palavras tinham sido cuspidas e agora podia se recuperar. Devolveu, voltou, entrou no carro. Ele fez piada, deu chocolate. Disse que era para esquentar. Chamou-a de "bombom", e entregou outro chocolate. Ela adorou. Lembrou dos vôs. Mais conversa e o destino chegou. Alice tinha que deixá-lo. E se não vê-lo mais? Sentiu uma tristeza de morte. Tristeza que sabe que sentirá quando não mais puder ver seus vôs. Despediu-se. Será que El Conde entende como Alice o queria bem? Alice não poderá saber. Conforta-se em saber que comeu neve, e, talvez voltará a encontrá-lo.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Alice desistiu de se perguntar, de curtir a dúvida. Entendeu que aquela rotina de interrogações tomava a sua vida e a consumia de um jeito que não lhe sobrava. Decidiu que se ocuparia do resto do mundoe, se o amor existisse de um modo possível, se fosse que conduzisse à emoção constante, ela descobriria. Então pensou sobre o que se ocuparia. Pensou no que gostava. Natal. Ainda falta muito. São joão. Falta muito também. Alice sabia que gostava de festas, mas a vida não era uma - nos tempos em que morava no seu antigo país, Alice, romanticamente, poderia dizer que era, mas agora sabia que não. Alice suspirou. Sabia que, além de festas, gostava de viajar. Conhecer. Alice gostaria de viver conhecendo, descobrindo. Lembrou da sensação que teve ao chegar em alguns lugares pela primeira vez. A primeira vez numa metrópole. A primeira vez na neve. Primeira vez naquela praia de gente nenhuma e mar de muita espuma. Primeira vez naquele poço que despencava água e congelava a perna. Primeira vez naquele restaurante com vela e piano. Talvez isso também a apaixonasse. O que será que Alice gastava mais? Viajar ou passar pela primeira vez? Bom, se a segunda opção fosse a verdadeira, Alice não gostaria tanto de retornar aos lugares que conheceu. É, retornar também agradava Alice. Sonhar com um lugar, desejá-lo, sentir saudade do cheiro, do gosto, do frio ou do calor e, finalmente, estar de novo lá. Talvez por isso, Alice goste tanto das festas de Natal e São João. Alice espera e elas sempre chegam. Enquanto isso não acontece, Alice se delicia com a saudade das luzes, dos presentes, do cheiro de infância, do gosto do bolo. Se não com isso, com o gosto da pamonha, com a saudade do forró, da alegria das pessoas. Ai, Alice sentia um aperto, uma saudade do mundo. Aquele mundo que era tão seu, mas só de vez em quando. Só nas festas, só nas viagens. No resto do tempo, Alice incomodava-se com o calor, com a falta do que fazer, com as notícias ruins do jornal. Bom, Alice não quer mais se angustiar, ocupar seus pensamentos com o que a consome. O que fazer? Pegou a câmera fotográfica para fazer o que mais gosta: descobrir o mundo.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Alice entrou no ônibus. Estava sem pressa. Uma moça levantou e Alice descansou em seu lugar. Olhou em volta, várias pessoas em pé e um lugar vazio à frente. Perguntou-se o que acontecia. Ao lado do vago, uma senhora. Pele branca, vestes de velha, bolhas no rosto, secreção cor de laranja. Alice entendeu a situação. O ônibus parou e, em meio às pessoas que subiram, um menino grande de baba no queixo e mãos retardadas. Sua mãe não o aguentava mais no colo. Sentou-o ao lado da senhora. O menino olhou para a velha e sorriu. Ela, aliviada da sua solidão, sorriu também. Olhavam-se e, por instantes, suas almas se encontraram. Sentiam-se iguais, gostavam da presença calada um do outro. Satisfaziam-se com a luz que seus sorrisos se deram. Nada mais precisou ser dito. Era ela e ele no ônibus inteiro. Seus olhos conversaram. Oi, achei a senhora bonita. Achei você esperto. O que fez hoje? Voltei de um exame. Eu também. E então, tudo bem? Os médicos disseram que não sabem o que tenho. Para mim, disseram que não tenho jeito. Gostei de te encontrar, geralmente não consigo me comunicar. Você também me fez bem, estava me sentindo sozinha. Sabe que achei o dia colorido hoje? Achei um dia de saudade... A conversa continuava, os olhos eram tagarelas e os sorrisos fofoqueiros. Alice tinha que saltar.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Ela sentou. Leu. Lembrou. Um reencontro deixou tudo mais recente. Depois de tanto tempo, o reencontro. Quantas vezes reencontraram-se! Tantas vezes que talvez ela nem se lembre. Alice sabe que não precisa estar longe para que exista o desencontro. Abraços. Abraços. Abraços. Olhos fechados. Podia lhe dar mais. Podia dizer mais. Não, não podia. A amizade entre eles nunca poderá ser entendida. Nem por ela. Até quando eram irmãos? Até quando eram amigos? Até quando? O que Alice podia esperar depois de tantos desencontros? Só sentia. Sentia por todos os amores secretos que não viveu por falta de coragem. Sentia por não ter se oferecido mais. Ela não sabia mais o que queria. Queria alguém para enxugar suas lágrimas? Sua vaidade a fazia tê-los? Não sabia. Talvez, quisesse todos. Sabia que não podia. Eles não aceitariam. Ainda podia lembrar dos momentos. Momentos em que era só ela e ele. Cada um tinha seu momento com ela. Será que num instante é melhor ter outro momento? Talvez. Em meio a tantas renúncias, talvez seja melhor interromper e começar diferente. Tê-los na lembrança e só. O que ela esperava do amor agora? Alice não sabia. O amor antes tão desejado, estava agora desacreditado. Flores foram dasdas, palavras confiadas, o corpo, o sentimento. Tudo foi entregue. Renúncia às reivindicações. Será que o amor precisaria ser assim? Alice não sabia. Antes, esperava um amor para toda vida. Agora, nem sabia para que caminho ia sua vida, como poderia achar que alguém a acompanharia? Alice tinha na conta, alguns homens que a amaram. Os outros foram amores não correspondidos de uma parte ou de outra. De fato, poucos a tiveram. Talvez, nem tivessem todo o amor dos outros. De que adianta números? Muito? Pouco? Alice sentiu-se amada. Mas, e o amor que ela tinha para oferecer? De que adiantava ser amada? O que adiantava ser ouvida, o que importava ser conhecida? Se eles sabiam que quando ela estava nervosa, espirrava, ou se sabiam que quando ela bebia sua orelha ficava vermelha? O amor era só isso? Compreensão e intimidade?Alice queria frio na barriga. Alice queria sorrir à toa. Pode alguém viver assim? O amor deixa alguém eternamente nesse estado? Alice não sabia o que esperar da vida. Ainda não estava certa do que queria. O amor se foi? Disso, Alice não sabia, mas sentia que a resposta estava próxima, muito próxima.
Alice encontrou sua caixa de lembranças. Revirou seu pouquinho de história, suas memórias esquecidas. Achou o diário da adolescência. Leu: "E chega uma hora em que as coisas não fazem mais sentido. E outras coisas fazem sentido. O lugar, o coração têm outro sentido. O lugar, o sonho, a identidade. Os gostos, as alegrias, os medos. Fazem do lugar mais lugar. A riqueza do momento. O pai, a mãe, a irmã. E tudo se transforma em chuva de individualidade. Um mar de descobrimento e a tranquilidade de se conhecer. Transparente e opaca. Mudança e dúvida e mudança. A timidez, o amor, os amigos. Os raros caprichos em meio à tolerância. Os sentimentos feios e bonitos. A alegria de permitir pensar feio como rebeldia a todos os rótulos adequados e incabíveis. E o pensamento bonito mais presente que o pensamento feio. Antes virgem pálida, agora interessante? Talvez interessante por fora, talvez com medo por dentro. Antes sozinha e sem identidade. Agora acompanhada. Com identidade, ou sem identidade? Amor como brisa ou tempestade? Convencional ou moderno? Para sempre? Para sempre e momentâneo. Seguro e impactante. O lugar. O espaço. A fraqueza entendida, temerosa, mas feliz já que entendida e clara. Mais leve. Pesada também. Sem certeza do que é ou vai ser. Com medo do que vai embora. Feliz com outras coisas". Alice pensou. Não entendeu algumas coisas. Pensou. Leu. Se reconheceu. Embora muito tivesse mudado, lembrou, entendeu. Ali estava ela. Igual e diferente. Percebeu que continua com medo. Talvez outros, talvez os mesmos. Talvez tenha medo e nem saiba exatamente de que. Mas sabe que, embora não queira, sua atitude ainda é de pouca coragem. Sabe que os sonhos ainda são poucos, são confusos, mas sabe que tem um pouco mais certeza de quem é, da sua identidade... Dá risada dela mesma. Se achava interessante? Ah, Alice não era interessante, agora sabe disso. Tantos e tantos medos, tão poucos caprichos. Mesmo assim, conseguiu algumas amizades. Com toda sua dificuldade de sociabilidade, Alice se orgulha dos amigos que conquistou. Alguns ainda continuam até hoje ao seu lado. Da timidez ela sabe que, em parte se livrou, mas sofre quando vê que ela ainda aprisiona, ainda fere. Pelo menos, se permite ter os pensamentos feios e sinceros. Aqueles pensamentos que foi ensinada a nunca poder sentir. Agora, a mãe ou a avó não os reprimem. Pra dizer a verdade, elas nem os conhecessem. Sabe que tem ciúme, sabe que sente inveja. Talvez agora, sinta mais do que antes. Agora se permitiu. Mas ainda é difícil admitir que os tem. Alice sabe que é desconfiada. Não sente-se confortável com quem acabou de chegar. Mas é só no início, depois, se destranca do seu mundo e abre a porta para o novo entrar. Os gostos também mudaram. Quanto ao amor e ao lugar... Ai, ainda não sabe onde colocar. Medo?

terça-feira, 31 de março de 2009

Conversa com intrometidos

Alice, por que você se deixa ser escrita? Cansei de diários. Mas e se as pessoas te descobrirem? Só quem quiser. Mas, e se pensarem ruim de você? Essa sou eu, o que fazer? Logo você que se irrita de ser falada? O critério é negado a alguns e concedido a outros. Você sabe o preço que pode pagar? O preço de viver. Não tem medo? Medo sempre tenho, mas cansei também dos medos e não quero que se preocupem comigo, cuidem de mim, cresci. Posso me oferecer se quiser, viver tanto, se quiser, tomar chuva, comer pouco ou muito. Posso brigar, amar. Não quero medo. Cansei. O que vai fazer agora? Ainda não sei. O que gosta de fazer? Ainda não sei. Esquece o que gosta, vai morrer de fome é? Não sei, acho que não. Vai ser sustentada pelo marido? Até que podia, não ligo para feminismo, mas posso cansar de fazer nada. Além disso, quero minha liberdade. Vai tomar um sol. Não gosto. Não gosta? Pois é, ainda bem que as pessoas são diferentes, não acha? Você é esquisita. Pode ser, não sei. (Você está gorda. Adoro comer.) (Você está muito magra. Gosto do jeito que sou.) Estava dormindo? Estava. Você é prequiçosa. Um pouco, mas acho sua colocação agressiva, não me venha com suas verdades. Não tem o que fazer? Tenho, já vou. O que é isso Alice, seja doce. Está bem, vou tentar.
Alice chegou na sala de espera. Viu que não estava sozinha. Alguém também esperava. Boa tarde. Boa tarde. Sentou. Estava com calor, mas não é do tipo que toma iniciativa de puxar conversa, sente-se mais confortável de ser procurada, sobras de timidez. Silêncio. Alice ficou constrangida. Pegou uma revista. Talvez, se estivesse sozinha, não quisesse ler, mas não sentia-se confortável para fazer o de sempre (devanear) na frente de um estranho. Enquanto lia, pensava na situação. Será que eles esperavam a mesma coisa? Será que o silêncio, tão íntimo que é, poderia ser dividido com um estranho? Afinal de contas, poderia alguém que nada tem a ver com Alice, observar o ritmo com que passa as páginas, ou imaginar por qual reportagem Alice se interessou? Ao mesmo tempo que se impressionava com a intimidade/impessoal, lembrava da viagem de ônibus que fez. Sentou, tirou os sapatos, esticou a perna. No colo, um livro; na frente, uma linda paisagem; ao lado, um estranho. Como Alice podia sentir-se confortável? Na sua cabeça, milhões de pensamentos apostavam corrida, pisoteavam-se. Pensava-se observada. Apesar de estranho, até que gostava Dormiu. Depois, pensava. Ele nem a conhecia para que tanto lhe fosse dado: olhos fechados. Nem sabe de que ventre ela veio. Nem sabe que ela já não ouve as mesmas músicas de antes, ou que os seus sonhos sentem-se ultrapassados. Nem sabe que ela não permite que alguém (sem permissão) opine em sua vida, e que, por outro lado, concede acesso ilimitado a alguns. Nem sabe que não existe critério para isso. Ele olhou. Sorriu. Não falavam a mesma língua, mas entendiam-se. Ele tentou falar. O critério foi usado: negado. Preferiu apenas continuar sendo observada. Será que ele a imaginava melhor ou pior do que realmente era? Será que gostava dos seus movimentos? Alice. Alice. Pode entrar.

sábado, 28 de março de 2009

Na infância, Alice tinha um quê de tristeza. Calava-se. Subia na árvore e ficava só. Talvez triste, talvez em paz. Subia quando tinha tristezas de criança. Período de separação. Na adolescência também tinha um quê de tristeza, mas a árvore não existia mais para ela. Existia para outros. Hoje, Alice ainda tem tristezas. Tristeza pelo desejo não descoberto... Agora, sabe que a vida não é fácil. Quem falou que seria? Não lembra. Mas, descobriu, embora já ouvisse pistas, que a dificuldade pode ser amenizada. Descobriu quando percebeu, despretensiosamente, a música de um pássaro. Música com sutis cadências de engano. Não muitas. Esse era simples, sem muita criatividade. Simples como Alice. Simples como as férias compartilhadas com os primos na casa de praia. As conversas com a irmã. Um fim de tarde, sol morno, ondas pequenas e a criança que pega a mão de Alice. O futebol na areia cinza e a vó entregando a bucha para tomarem banho. As brincadeiras na fazenda. O "gato-mia". A conversa com o amigo. As brigas e reconciliações. O cinema e o brigadeiro. O ensaio semanal. A conversa constante. O caminhar no vento. A música da mãe. O beijo demorado. O frio na barriga. A viagem de carro. O banho de cachoeira. As flores recebidas. O cachorro no café-da-manhã. O olhar do pai. O choro aclmado pela irmã. A conversa na calçada. Alice descobriu que além das tristezas, a vida era também, simplesmente feliz.
Quando era adolescente, Alice sabia que era "virgem pálida". Tinha aquela palidez de quem nunca gostou de sol, aquela palidez diante da vida. Atitude de virgem. Achava que tinha que ser. Seus sentimentos já eram intensos, é verdade, mas sempre guardados, calados, presos. Por isso era tanto. Tudo sufocado. Quando conseguia colocá-los para fora, sentia-se bem, mas tinha medo. Até hoje não consegue colocar em palavras algumas coisas. Chora. Um choro que é vômito: colocando pra fora à força. Colocando para fora a força. É, na adolescência, Alice tinha medo. Medo de compartilhar, de se revelar. Hoje, Alice se permite, se oferece. Por isso quer ser solteira, para se oferecer ao outro. Sabe que a monogamia é renúncia e ainda não decidiu se quer abrir mão da liberdade, de reivindicar o olhar. É, o olhar que vem e vai, quase que nem o vento. Então, pode olhar e ser olhada. Não sabe do que gosta mais. Acho que de ser olhada por quem é alvo do olhar. Alvo que desperta o interesse em meio a todo devaneio que a toma, a rouba dos lugares. Dentre ainda tão poucos interesses, desejos conhecidos, o olhar já é entendido e. O olhar que traz consigo a verdade, o encontro. Tão bom quanto uma brisa num dia de calor. Tão refrescante quanto a chuva que. Alice ainda lembra da primeira vez que encontrou a chuva. Lembra da primeira vez que sentiu-se só com ela. Um sentimento de cumplicidade a invadiu. Antes não se encontravam. Alice saía, a chuva ameaçava fazer-se conhecida à força, mas só acontecia quando Alice chegava. Quem evitava quem? Até que um dia caiu, mas Alice estava tão entretida que não percebeu. Alice a evitou. No dia seguinte, levou guarda-chuva. E ela foi presenteada. Durante a infância, o guarda-chuva era sempre dividido: ela, a mãe e a irmã, sensação sempre de acolhimento, poucas oportunidades de solidão com ela mesma. Agora estava só. Aliás, acompanhada da chuva. Sorriu. Estava feliz. Eram só as duas. Podia ouví-la. Um breve momento de silêncio em seus pensamentos. E logo eles a devoravam novamente, mas, em seus devaneios, não estava mais sozinha. Havia um frescor. Havia um som que era marcação para sua muda fala. Seus pensamentos agora tinham uma base. Eram pensamentos de chuva. De chuva não, de Alice. Era como se além dela mesma, algo mais a escutasse. Sentiu-se olhada, refrescada. Tempos depois, andava pela rua quando avistou um Preto Velho. Um Preto de chapéu, cheiro de fumo e ar de velho. Alice adorava aquela figura. Parecia-lhe familiar. Lembrou-se dos tempos em que passava as férias no interior de seus avós. praça. crianças. geladinho. croché de vó. fogueira de vô. brincadeira. igreja. quintal. Preto Velho. Quando voltou de suas lembranças, avistou um guarda-chuva vermelho. Ela sabia que não precisava. Já tinha. Mas, vermelho não tinha nenhum. Comprou do Preto Velho mesmo sabendo que o período de chuvas já tinha acabado. Ele ficou feliz. Ela também.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Quem é Alice?

Alice não quer mais voltar pro país de origem. Às vezes tem dúvida, mas prefere achar que o país do "De Verdade" é inevitável. Começou a sofrer com os indícios de que tudo que acreditava era falso. Atualmente, se incomoda quando vê moradores do seu antigo país. Talvez seja uma saudade, uma nostalgia. Não tem jeito. Alice agora vive em outro lugar, com outras regras, outro funcionamento. Às vezes, sente-se muito perdida, muito angustiada. Está sem referencial. Sabe que agora NÃO QUER SE IMPORTAR COM O QUE OS OUTROS PENSAM DELA. Não sabe mais se é católica. O país do "De Verdade" a deixou muito materialista. Sempre agiu conforme sua ética e continua assim. Não sabe mais quais valores deve ter porque se surpreende com opiniões que antes não a pertenciam. É, ela tem opiniões fortes e por isso não sabe se ela tem as opiniões ou se as opiniões a tem. Tem vergonha de algumas. Acha que algumas pessoas não gostariam. Pois é, se esquece de que decidiu não se importar mais com o que os outros acham dela. Tem dúvida se é melhor continuar sendo tímeida, ou continuar sendo espontânea.. Ela tem um pouquinho dos dois mas quer decidir o que deve prevalecer nela. Brigou com Poliana. Acha que não dá certo a amizade porque agora pensam diferente, mas às vezes tem recaídas. Ainda é amiga de Lisbela porque gostam de falar do mesmo assunto (cinema), mas não quer mais ir no interior e por isso não se encontram. Ah, essa é a sua dificuldade: se encontrar com ela mesma. Nem sabe se conseguirá, então, enquanto isso não acontece, vive com os pequenos prazeres que não exigem muito dela: caminhar à noite, comer um bom doce, estar com as amigas ou com a família. É ela ainda come doce, mas não tanto quanto antigamente. Antes era gordinha, era "A Feia", agora melhorou. Dez anos se passaram e ainda vê que tem coisas da "Feia". Tem mania de Dorothy, adora um sapato (ou tênis, ainda usa de vez em quando) vermelho. Antes gostava de cor de rosa, achava que era cor de menina, mas depois de Lóri, achou que o vermelho caía melhor nela também. Sabe que seu nome é de flor, e já disseram que ela é delicada como uma, mas não sabe mais se continua sendo porque nesse processo de mudar de país, ficou um pouco agressiva. É porque não sabe mais como reagir a determinadas situações de agressões permitidas. Vive vivendo agressões permitidas. Essas agressões sutis que as pessoas fazem e as outras não vêem nenhum problema nisso, mas que ela fica profundamente ofendida e acaba reagindo de forma não permitida. Bom, ainda gosta de chuva, ainda gosta de guarda-chuvas e cobertas. Gosta de viajar e colecionar fotografias felizes. Queria saber tocar piano e sapatear. Queria dar conta de tudo, quem sabe até controlar, ter garantia de felicidade. Quando está muito cansada, queria ter um vácuo de tempo, onde o tempo real congelasse e ela pudesse ir e voltar mais descansada, pra retomar de onde parou sem danos. Queria gostar mais de "dividir os brinquedos". Os adultos fazem isso mas ela não se permite. Experimentou "a água" que fazia sentir-se bem, como se estivesse de novo em seu país. Gostou, mas sabe que não pode bebê-la. Aprendeu que pode beber a água de Aurora, mas mesmo gostando e sabendo que é permitida porque já tem idade para isso, tem vergonha se relaxar demais. Não gosta que falem sem sua presença. Também não gosta que falem mal dela (por conta das recaídas sobre não ligar para o que os outros pensam). Não gosta de ser falada e, por ser também difícil falar de si, é que ela existe.